terça-feira, 26 de outubro de 2010

uma história inacabada



João desceu de sua mula bem em frente à pequena casa feita de sapê, onde morava com a sua esposa e suas duas filhas pequenas. Era meia-noite. Abriu a porta com tamanha força que a fechadura se partiu em duas. Sua esposa acordou.
- O que foi isto, João?
- Não dá tempo de explicar. Arrume o que puder arrumar numa mala e vamos embora.
- O que houve?
- Já disse que não temos tempo. Cadê as meninas?
- Estão dormindo.
- Acorde elas.
- João, você está me deixando assustada? Diz logo o que foi que aconteceu.
- Zefa – disse João segurando a sua esposa pelo braço e olhando bem fundo nos olhos dela. O seu rosto parecia transtornado. – Você não entende... – Não consegui completar a frase.
- O que é isso não sua mão, João? – Zefa segurou sua mão direita que trazia um objeto.
- Não é nada.
- Me diz que você não esteve lá de novo, João, por favor.
- A gente vai sair dessa...
- Me dá isso aqui, João! – Zefa tenta arrancar da mão de João o objeto.
- Eu não posso! Eu não posso! – gritou João arqueando-se.
                Do lado de fora da casa, o barulho de passos pesados amassando as folhas no roçado denunciava a chegada de alguém. Uma forte luz entrou por debaixo da porta e pelas réstias das janelas. O coração de João acelerou ainda mais.
- O que foi que eu te disse? – gritou Zefa em tom de reprovação.
- Onde está a minha espingarda? – disse ele vasculhando como um louco um armário velho na sala.
- No lugar de sempre, João.
- Entre no quarto. Tranque a porta – olhou e viu que a espingarda não estava carregada.
- Mas o que...?
- Faz o que eu te disse Zefa, rápido! – pegou dois cartuchos e carregou a arma. Zefa correu para o quarto e trancou a porta.
                João se posicionou ao lado da porta de entrada com a arma erguida, encostada ao seu peito. Sua testa suava. Ele jamais havia enfrentado uma situação como aquela. O barulho dos passos parou bem em frente à sua casa. Ele não ouviu mais nada, apenas o silêncio morno da noite sertaneja. João esperava com a arma em guarda. Estava pronto. Mas não aconteceu nada.
- Diabos! – resmungou ele.
                A sua mão tocou a maçaneta da porta e ele a girou lentamente. Não sabia o que haveria de encontrar. Ele abriu a porta com um solavanco e a sua espingarda apontada para a escuridão. Apenas a luz da lua cheia era o que ele podia ver. Olhou para todos os lados, esperava o momento de tudo acontecer. Nada nem ninguém.
- Apareça!- girou ele enquanto avançava pelo terreiro com a arma em punho e girava para todos os lados. – Diabos! – resmungou mais uma vez.
                De dentro da casa, o grito estridente da sua mulher dissipou o silêncio das trevas. Ele olhou para trás e correu o mais depressa que pode.
- Zefa! – gritou ele enquanto entrava espavorido pela casa adentro. A porta do quarto estava trancada. João a forçou o máximo que pode, mas não consegui abri-la. – Zefa, abra a porta! – gritou socando a madeira surrada. Nada. Ele afastou-se alguns centímetros e com o pé derrubou a porta no chão. Entrou com a arma em punho. Não havia ninguém, apenas roupas e cobertas espalhadas pelo chão e uma janela aberta.
                João correu para a janela desesperado. Olhou por ela para todos os lados, mas a única coisa que pode contemplar foi o vazio à sua frente, nada mais. No alto de um pé de algaroba uma coruja piou. Os seus olhos arregalados pareciam fitá-lo. Ela voou para longe, deixando João atordoado.
- Zefa! – gritou ele a plenos pulmões. Os seus olhos estavam cheios de lágrimas.
                Num salto, João pulou a janela e caiu no meio do terreiro. Com a espingarda apontando para a escuridão avançou rumo ao desconhecido. Os seus passos estavam pesados de medo e de remorso. O que ele fizera! Mas não podia deixar a sua família para trás.
- Maldição! – gritou ele enquanto se via cercado pelo breu e pelo silêncio da mata ao seu redor. Ele não sabia, mas grandes olhos o espreitavam detrás do véu sombrio daquela noite, como lentes cinematográficas, observando todos os seus passos, todos os seus gestos. Seja lá quem fosse, podia sentir o medo dentro dele.
- João! – sussurrou uma voz trêmula próximo ao seu ouvido. Ele virou-se para trás empunhando a espingarda, mas não havia ninguém.
- Quem está aí? Apareça de onde estiver! – apontou a arma para todos os lados, mirando o breu.
- João! João! – agora eram inúmeras vozes que penetravam como farpas nos seus ouvidos. Sussurravam seu nome.
- Parem! – gritou ele caindo ao chão com as mãos nos ouvidos. Os sussurros cessaram.
João se levantou atordoado e voltou para dentro de casa, deixou a espingarda sobre a cama das crianças e correu para o quintal. Encheu um balde com água na cisterna ao lado da casa. Pegou uma inchada e escavou o chão, tirando uma quantidade razoável de terra. Misturou a água e fez um barro meio enlameado. Colocou o barro no balde e correu para dentro de casa.
- Eles não vão encontrar isto – disse ele enquanto abria um buraco com um martelo na parede da própria casa. Depois, colocou o objeto que trazia consigo numa lata de ferro, depositou-a no buraco aberto na parede, e fechou tudo com o barro que havia preparado. Seja lá o que for que ele desejava esconder, ali estaria seguro.
                O céu ficou encoberto com nuvens negras e carregadas, como há muito não acontecia naquele recanto escondido do sertão. Um relâmpago cortou o céu com grande estampido e uma chuva pesada começou a cair. João reuniu o que pode numa mala, pegou a sua espingarda e mais alguns cartuchos cheios, colocou sobre a sua mula e partiu em disparada pela estrada de terra cercada pela mata do sertão. Talvez ainda desse tempo de salvar pelo menos a si próprio.
                A chuva castigava-o à medida que avançava. Ele chicoteava o lombo do animal, parecia querer fazê-lo voar. De repente a mula empacou, parecia assombrada olhando o caminho a sua frente, onde mal dava para enxergar algo na negritude e através da chuva que caía torrencial.
- Eia, vamos! – João feriu com as esporas o lombo da mula, mas ela não saía do lugar. – Diabos! – vociferou ele.
                Assim que conseguiu fazer com que a mula se acalmasse, uma coruja veio num vôo silencioso e pousou sobre a cabeça do animal, soltando um forte piado que poderia ser ouvido a dezenas de metros. João olhou em seus olhos, vermelhos como o fogo, parecia hipnotizado.
- O que vocês querem? – murmurou ele.
                A mula bateu em disparada sumindo sozinha na escuridão molhada daquela noite sombria. João nunca mais foi visto... Nem a sua família.

Nenhum comentário:

Postar um comentário